Eu admiro muito os médicos, os vejo como heróis na nossa sociedade, por tanto que estudam, por tentarem melhorar a nossa saúde e qualidade de vida. Mas infelizmente vemos que eles são apenas uma importante peça numa enorme engrenagem do sistema de saúde. Convênios médicos caros, industrias farmacêuticas lucrando com a nossa dependência de medicamentos, o caos na saúde pública.

A matéria a seguir foi publicada na revista SUPERINTERESSANTE do mês de Março de 2016, edição 358,{" "} 20 segredos que os médicos não contam . Escolhi os 10 segredos principais para não ficar tão longo, em breve eu publico a segunda parte.

Reportagem: Fernanda Ferrairo e Bruno Garattoni.

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1 – 30% dos gastos são desnecessários e 20% das cirurgias também.

No réveillon de 2011, o carioca Márcio o Alexandre, de 40 anos, sentiu uma forte dor nas costas. Procurou um médico, que o diagnosticou com hérnia de disco. Ele começou a tomar anti-inflamatórios e fazer fisioterapia. Quatro meses depois, não estava melhor, e o médico sugeriu um procedimento simples: injeções de corticoide na coluna. Márcio ficou dois dias no hospital e saiu com mais dores do que antes. No total, passou por 8 intervenções cirúrgicas nos últimos quatro anos. Cada uma delas piorou m pouco seu estado. “Virou um pesadelo. Sinto dores agudas e constantes”, relata. Hoje ele não trabalha e mal sai de casa. Seu caso ilustra um grande problema na medicina moderna; o excesso de procedimentos. Entre os médicos, essa tendencia é chamada de “procedimentalização”. Ele é consequência de dois fatores. O primeiro, é a própria evolução da medicina, que dispõe de cada vez mais ferramentas para tratar as pessoas (e as utiliza mais vezes.) O outro é a própria estrutura do sistema de saudê, que coloca incentivos financeiros para que haja mais procedimentos (Pois os hospitais são pagos de acordo com a quantidade deles e não com a saúde do paciente.) Uma investigação feita em 2012 pelo jornal USA Today, que analisou os prontuários de milhares de pessoas, apontou que até 20% das cirurgias realizadas são desnecessárias (principalmente em áreas como ortopedia e cardiologia). Segundo a American Board of Internacional Medicine, que criou um projeto para coibir o excesso de operações, 30% dos gastos em saúde vão para procedimentos desnecessários. No Brasil, o hospital Albert Einsten criou o Projeto Coluna, em que médicos oferecem uma segunda opinião para pacientes aos quais foi sugerido fazer cirurgia. Em 60% dos casos, a pessoa acaba desistindo da operação.

2 – Boa parte dos médicos admite esconder coisas – E alguns já mentiram aos pacientes
“Todos os erros médicos significativos devem ser revelados aos pacientes”. Esse era um dos itens de um questionário respondido por 1.891 médicos americanos. 65,9% escolheram a opção “concordo totalmente”. Os demais, 34,1%, preferiram a outra opção; “concordo em parte ou discordo”. O questionário também perguntava: “No último ano, você deixou de informar plenamente um paciente?”. 19,9% admitiram que sim. Além disso, 28,4% assinalaram ter “revelado, intencionalmente ou não, informações dos pacientes para uma pessoa não autorizada” – e 11% confessaram ter dito alguma mentira a um paciente no ano anterior. O próprio estudo aponta a principal causa: medo de ser processado. Ele é mais forte nos EUA, mas também é debatido entre os médicos brasileiros – que se referem a ele como “judicialização da medicina”. Um grande entrave na relação médico-paciente – que deveria ser pautada pela confiança absoluta.

3 – Muitos médicos tem conflitos de interesse
Desde 2010, o governo americano obriga as empresas farmacêuticas a registrar seus gastos com a classe médica. Os números mais recentes são de 2014. Nesse ano, as empresas declararam US$ 6,45 bilhões. A maior parte vai para o financiamento de pesquisas cientificas (pagando os salários dos médicos envolvidos). Mas US$ 2,5 bilhões se destinam a “despesas gerais” – que incluem material e eventos de divulgação, brindes, refeições e viagens a congressos para médicos, que também podem ser recrutados para fazer palestras pagas. E isso pode ser um grande problema para os pacientes, por afetar a isenção profissional do médico – e criar um incentivo para que ele receite mais medicamentos da empresa com a qual mantem relações. Foi o caso do psiquiatra Daniel Carlat, que escreveu a respeito no New York Times. Ele conta ter recebido proposta de uma multinacional farmacêutica. Daria palestras, a outros médicos, sobre um novo antidepressivo. Receberia US$ 500 a cada uma. Ao mesmo tempo em que dava as palestras, Carlat pesquisou por conta própria sobre o medicamento. Descobriu que algumas pessoas que o tomavam desenvolviam hipertensão, efeitos que os outros antidepressivos não tinham. Também viu seus próprios pacientes tendo problemas (quando tentavam parar com a droga, apresentavam fortes sintomas de abstinência). Decidiu rasgar o contrato. No Brasil, a relação entre laboratório e médicos é menos transparente. “Nós pedimos à industria que nos enviasse os nomes dos médicos [com os quais ela tem relação]. Nenhuma empresa respondeu”, conta o cardiologista Bráulio Luna Filho, presidente da Cremesp.

4 – As gigantes farmacêuticas sabem quais remédios você toma
Em seu relato, o psiquiatra Daniel Carlat faz uma revelação perturbadora. Segundo ele, o contrato com o laboratório farmacêutico teria acesso a dados de seus pacientes – diagnósticos, tratamentos e evolução de cada pessoa. O objetivo disse é saber se o médico está de fato receitando o medicamento daquela empresa. “É chamada garimpagem de dados de receita”, diz. Os laboratórios contratam empresas especializadas nesse processo – que vão até os médicos e farmácias coletando receitas. “A maioria dos laboratórios mantem convenios com as farmácias e obtém copias das receitas dos médicos”, afirma Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp. A questão é especialmente delicada no caso de medicamento psicoativos, como calmantes e antidepressivos – se você toma, provavelmente preferiria que isso ficasse somente entre você e seu médico. O Conselho Regional de Farmácia diz que a cópia de receitas é proibida.
As empresas também tentam aliciar os próprios pacientes. Quem toma remédios de uso continuo pode se cadastrar, pelos sites dos laboratórios, informando o CRM do médico que os receitou – e, em troca, obter descontos no preço dos medicamentos. “O paciente tem autonomia. Mas nós não aprovamos esse comportamento”. afirma o cardiologista Henrique Batista, Secretário-Geral do Conselho Federal de Medicina.

5 – A Industria Farmacêutica gasta mais em marketing do que em pesquisas
A cada ano, o mundo gasta aproximadamente US$ 1 trilhão em medicamentos. Você leu certo – trilhão. A industria farmacêutica movimenta somas gigantescas de dinheiro, em parte graças a produtos caros. O remédio de maior faturamento global é o anti inflamatório injetável Humira, usado no tratamento da Doença de Crohn, que custa US$ 1.500 mensais e, em 2014, trouxe US$ 12,5 bilhões a seu dono, o laboratório Abbott. A industria justifica os preços alegando que desenvolver remédios é um processo longo e dispendioso (porque a esmagadora maioria das drogas fracassa durante os testes, e não é lançada). É verdade. Mas uma meia verdade. Das dez maiores empresas do setor, nove investem mais em marketing do que em pesquisas cientificas – 30% a 80% mais. Tem dado resultado: segundo um levantamento da revista Forbes, o setor farmacêutico é mais lucrativo de todos, com 21% de margem média de lucro (à frente até dos bancos e das empresas de tecnologia, com 17,3% e 16,1%).

6 – Alguns médicos recebem proprina
Como em qualquer profissão, os médicos também erram. Mas – como em qualquer profissão, também – há quem aja de má fé. “É muito comum vermos médicos que solicitam uma prótese ou material cirúrgico especial, de uma marca especifica. Muitas vezes nem é a melhor ou mais indicada ao caso, mas eles não aceitam outra”, conta o auditor de um grande plano de saúde, que também é médico e falou à SUPER com a condição de não ser identificado. “É que o fabricante desses materiais paga comissão ao médico”, explica. Também há fraudes envolvendo exames. “A esmagadora maioria dos exames de ressonância magnética de joelho é desnecessária. Mas a clínica que realiza esses exames muitas vezes repassa um percentual do lucro aos médicos”, diz o auditor. “Muitas vezes há exagero na solicitação de exames, com interesse econômico”, afirma o cardiologista Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp.

7 – Médicos cometem 12 milhões de erros por ano – só os EUA
Três estudos estimaram a quantidade de erros médicos nos EUA. Sua conclusão: 12 milhões por ano. Os pesquisadores chegaram a essa estimativa, que se refere a erros de diagnostico (não inclui outros tipos de erro, como em cirurgias), analisando 2,544 casos. Os erros afetam 5,08% do total de diagnósticos, Segundo o estudo, a probabilidade de eles causarem dano aos pacientes é de 50%. “O numero de denuncias ao Conselho tem aumentado. Em 1993, recebíamos 5 por dia. Hoje são 18”, diz Bráulio Luna, presidente do Cremesp. Errar é humano. Mas a cultura de infalibilidade médica, não – e ela é, inclusive, apontada por médicos como uma causa do índice de suicídios na profissão.

8 – A industria farmacêutica esconde os estudos que não dão certo – e manipula os que dão.
A criação de novos remédios é financiada, principalmente, pela industria farmacêutica. E é natural que seja assim. Mas, como a industria controla os estudos, pode interferir neles.Nos EUA, os laboratórios são obrigados a publicar todos os resultados de seus testes em um banco de dados mantido pelo governo. Mas uma análise feita em 2013 e publicada no jornal científico Nature constatou que apenas 50% são publicados. O resto, não – e isso pode ter consequências terríveis. Em 2004, o laboratório GlaxoSmithKline foi processado pelo Estado de Nova York, que acusou a empresa de omitir dados apontando que o antidepressivo Paxil causava pensamentos suicidas em crianças. A empresa fez um acordo judicial, e liberou os dados.
Os resultados também podem ser, pura e simplesmente, manipulados. Um dos casos mais famosos envolve o Vioxx, remédio indicado para tratar artrite e dores menstruais. Foi um sucesso, chegando a render US$ 2,5 bilhões anuais a seu criador, o laboratório Merck. Só havia um problema: se usado por mais de 18 meses, dobrava o risco de ataque cardíaco. A coisa foi para na justiça, onde um cardiologista afirmou que a empresa sabia do risco – mas omitiu a informação. Para piorar, o médico americano Scott Reuben, autor de 21 estudos sobre o remédios, admitiu ter forjado dados (enganando o próprio laboratório). A empresa fez uma acordo judicial, se comprometendo a pagar US$ 950 milhões em indenização, e tirou a droga do mercado.

9 – A medicina não sabe como muitos remédios funcionam. E alguns simplesmente não funcionam.
Você provavelmente já tomou paracetamol quando estava com febre. Já deve ter usado algum relaxante muscular para aliviar dores no corpo. Quem sabe tenha tomado isotretinoína, na adolescencia, para tratar acne. Ou faça uso, hoje, de algum antidepressivo. Mas esses medicamentos tem uma caracteristica em comum que você não conhece: seu “mecanismo de ação não é plenamente conhecido”. Leia bulas de remédio e você encontrara essa frase em muitos, mas muitos deles. Ela significa que a ciência não sabe, com exatidão, o que eles fazem dentro do organismo. Sabe quis são seus efeitos (tanto os desejados quanto os colaterais), comprova sua eficácia e segurança, geralmente possui teorias sobre o mecanismo de ação. Mas, a rigor, não sabe como aquilo funciona. Só sabe, empiricamente, que funciona. Ela também sabe que alguns remédios, inclusive, não funcionam. Ou até funcionam, mas da mesma forma que uma pilula de farinha funcionarioa: como placebo. Um estudo de 2014 que avaliou antidepressivos concluiu que a maioria deles eram indistinguivel do placebo. Em tese, esses remédios deveriam aumentar os níveis de serotonina e ou dopamina no cérebro.Algumas das drogas estudadas, entretanto, não demonstram superioridade clinicamente significativa ao placebo (pílulas inócuas, sem efeito). Os pacientes que tomaram placebo também apresentam níveis aumentados de serotonina – só que ela foi produzida pelo próprio organismo, sem nenhum medicamento.

10 – Saúde gratuita custa caro
Pouquíssimos países oferecem assistência médica gratuita a toda a população. Tanto que ano passado o New England Journal of Medicine, em uma das principais publicações medicas do mundo, publicou um artigo elogiando o SUS – cuja abrangência costuma espantar os habitantes de países ricos. “O que mais me impressionou foi o fato de ser tudo de graça. Nos EUA, eu receberia uma conta de dezenas de milhares de dólares”, conta o americano Dylan Stillwood, que mora no Brasil há quatro anos e fraturou a mandíbula durante uma viagem a Pernambuco (ele foi operado no Hospital Regional do Agreste, em Caruaru). Ok, ele teve sorte. Todo brasileiro sabe que faltam médicos, equipamentos e condições na rede pública de saúde. E isso tem a ver, sim, com a corrupção e má gestão. Mas também existe outro motivo, muito mais forte: a matemática.
O Brasil tem a sétima maior economia do mundo, mas também tem a quinta maior população. Divida uma coisa pela outra e você constatará que, em PIB per capita, somos apenas a 74º economia do planeta. Isso significa que, mesmo cobrando impostos consideráveis, o Estado brasileiro arrecada pouco: tem US$ 5.700 pra gastar, por ano, com cada habitante – para custear todos os serviços públicos (Não só a saúde), em todas as esferas de governo. Pode parecer bastante, mas não é. O Reino Unido, cujo sistema de saúde inspirou o nosso, arrecada quase o triplo (e os países com os melhores serviços públicos passam de US$ 20 mil). “A proposta do SUS é extremamente avançada, comparável às melhores do mundo. Mas precisa de um mínimo [ de financiamento]”, diz o cirurgião Jorge Curi, conselheiro do CFM. Para funcionar com tanta abrangência, o sistema precisaria de muito mais dinheiro, que deveria vir de algum lugar: de outros serviços públicos, do aumento de impostos ou do crescimento do PIB per capita.